Hoje, rumei cedo ao Café Bom Dia para o meu cimbalino matinal da praxe. Tão cedo que nem sequer o Afonso lá estava. Mas, passados 10 minutos, lá chegou ele, caminhando pausadamente com o seu JN debaixo do braço. Cumprimentou-me com um aceno de cabeça e sentou-se a 3 mesas de distancia.
Continuei a tomar, calmamente, o meu cimbalino, enquanto lia algumas das últimas graçolas que certos primatas de coluna vertebral bastante curva por lá escrevem... E o que eu me rio interiormente com tanto dislate que leio!...
Até encontrei um grupo de Facebook, em que um membro pedia ao administrador do grupo para eliminar um post que outro membro colocara!... Pensar que, 46 anos após o 25 de Abril, há gente a solicitar o “lápis azul” deixa-me arrepiado... e MUITO TRISTE!
De repente, um timbre de voz que bem conheço, fez-me voltar ao PRESENTE, em que a DEMOCRACIA existe para bem de todos... Mesmo daqueles que gostariam de acabar com ela! O Serafim chegara e estava a sentar-se na mesa contígua à do Afonso.
[...]
- Bons olhos te vejam, Serafim – saudou Afonso – Estava a ver que já não aparecias hoje.
- Tu parece que não me conheces – respondeu Serafim – Eu adoro estes nossos encontros e só faltaria por um motivo de força maior, o que não é o caso.
Após um breve pausa para saborear o primeiro gole do café, que o empregado entretanto trouxera a pedido de Afonso, Serafim continuou:
- Desculpa lá o atraso, Afonso... Mas hoje, de manhã, vi uma notícia na CMTV sobre uma situação protagonizada por um cozinheiro, ao qual a jornalista apelidou de vigarista. E, com a história que foi contada, o termo vigarista pareceu-me pouco adequado... Por isso estive embrenhado a pesquisar em vários dicionários de língua portuguesa...
Afonso interrompeu o seu amigo, dizendo:
- Desculpa lá, Serafim, estou a leste desse assunto... Não queres fazer um resumo do caso, para eu conseguir acompanhar-te?
Serafim não se fez rogado e adiantou:
- O caso descreve-se em meia dúzia de palavras.... Um cozinheiro de renome internacional de nome Simon criou uma receita de bacalhau inovadora... Não, Afonso, não olhes para mim com essa cara pois não foi o Bacalhau à Luís de Matos... Chamou-lhe Bacalhau à Simon e partilhou, gratuitamente, a respectiva receita para download na respectiva página Web...
- Foi simpático e altruísta, esse tal Simon – comentou Afonso.
Serafim continuou:
- Tens toda a razão, Afonso... Mas apareceu um cozinheiro português, de nome Alexandre, que achou que podia ganhar um dinheirito com essa receita e tratou de imprimir tal receita e vendê-la a 15 dólares...
- Ahhhhhhhh – exclamou Afonso – Então foi esse cozinheiro Alexandre que a jornalista chamou vigarista, deduzo eu.
- Exactamente – confirmou Serafim – E eu acho que seria mais lógico chamar-lhe oportunista...
- Ou “chico-esperto” – alvitrou Afonso.
- Sim, claro – anuiu, de imediato, Serafim – De qualquer maneira estaremos de acordo que quem assim procede não é muito recomendável... Certo, Afonso?
- Totalmente de acordo, meu caro Serafim! – respondeu Afonso, sem hesitação.
Afonso respirou fundo e olhou para o céu, como que agradecendo a qualquer divindade celeste o facto de, finalmente, haver um assunto em que estava totalmente de acordo com o seu amigo Serafim. Este esboçava um sorriso que parecia querer transmitir algo mais ao seu amigo. Sem reparar em tal sorriso, Afonso não pode deixar de verbalizar os seus pensamentos:
- Sabes, Serafim... Fico contente por hoje termos encontrado um assunto em que estamos totalmente de acordo...
- Claro que estamos – interrompeu Serafim – E sabes porquê, Afonso?... Porque não estamos a falar de ilusionismo!
Afonso ficou estupefacto e respondeu:
- É mesmo... Nem tinha reparado nisso... E nós que só costumamos falar de temas de magia...
Com um ar enigmático, Serafim contrapôs:
- Se calhar até estivemos...
Seguiu-se um silêncio, durante o qual Afonso tentava dar sentido àquela frase enigmática do amigo, o qual se mantinha impávido e sereno, aguardando a inevitável pergunta de Afonso. Por fim este não se conteve e disparou:
- Agora vais explicar-me essa treta bem explicadinha, pois não estou a entender nada de nada...
Sem fazer esperar o amigo, Serafim respondeu:
- Ok, Afonso, vou esclarecer-te porque não quero que fiques na ignorância... O que acabo de te contar é uma metáfora e não mais do que isso... Tive medo que, se te falasse no caso real, com os verdadeiros protagonistas do meio mágico, tu começasses a dar desculpas esfarrapadas para os comportamentos pouco éticos, como já tens feito...
Afonso balbuciou, entre dentes:
- Não é bem isso... É que...
Serafim interrompeu-o e continuou:
- Ok... ok... Eu sei que, às vezes, só o fazes para me contrariares e me fazeres falar mais do que eu próprio quereria... Mas, voltando à vaca fria... A história verdadeira é a que te vou contar... No ano 2004 o Simon Aronson tinha, no seu website, para descarga gratuita, um PDF com o título “Memories Are Made of This – an Introduction to Memorized Deck Magic” e o Alexandre Figueiras colocou à venda no seu website "The Wonder Shop" esse mesmo livrinho... Ou seja, fez a descarga gratuita e imprimia o livrinho para vender por 15 dólares...
- É pá!... – exclamou Afonso – Isso é que é mesmo “chico-espertice”... Ou será oportunismo?... Se calhar é mesmo vigarice...
- De certeza que é uma tremenda falta de ética e de princípios – afirmou Serafim.
- Sem dúvida – anuiu Afonso pensativo.
Serafim, pareceu adivinhar o pensamento do amigo e comentou:
- Afonso, eu até sei o que estás a pensar...
Perante o olhar interrogativo de Afonso, Serafim continuou:
- Estás a pensar: "O Luís de Matos deve estar muito contente ao verificar que é gente deste jaez que sai a terreiro para "tomar as suas dores"...
Afonso permaneceu em silêncio e, de repente, como se uma súbita ideia lhe tivesse ocupado a mente, disparou:
- Pensando bem, tenho ideia que, na época, esse assunto foi denunciado pelo Jomaguy no fórum ILUSORIUM... Será para não ser reconhecido por esse comportamento que o Alexandre Figueiras mudou de “nome” para Alex D’Arcy?
Serafim ficou em silêncio. Há perguntas pertinentes que deixam qualquer um sem palavras.
[...]
Estava na hora de regressar a casa. Sem dúvida tinha que consultar o dicionário para esclarecer se existe a palavra “trilema”... É que eu estou perante o seguinte “trilema”: OPORTUNISTA, VIGARISTA ou “CHICO-ESPERTO”?